Foi o poeta Jaime Jaramillo Escobar que me mostrou os poemas de María Mercedes Carranza durante um almoço no seu restaurante chinês preferido em Medellín, ele me disse que tinha a impressão de que ela era uma poeta por quem eu iria me encantar. E sim, ele estava certo.
María Mercedes Carranza (Colômbia 1945 – 2003), foi poeta, jornalista e diretora da Casa de Poesía Silva, uma fundação e biblioteca pública inteiramente dedicada à poesia, localizada em uma casa com um pátio de azaleias muito antigo, bem no estilo colonial, na Candelária, em Bogotá; essa casa guarda em seu acervo livros, revistas, arquivos sonoros, arquivos fotográficos, videoteca, objetos literários diversos, auditório e promove atividades como saraus, concursos e publicações.
Michael Benítez Ortiz é poeta, editor e jornalista musical. Vive em Bogotá. Publicou diversos livros e plaquetes de poesia, mas também participou de antologias na América Latina e Espanha. Publicou os livros: Bogotrash (Contos, 2014), Lo que quería decir era otra cosa (Poesía, 2019) y Papeles (Poesía, 2020). Fez a compilação e editou as obras: Cumpleaños del tiempo de María de las Estrellas e El Gigoló de los dioses de Luis Ernesto Valencia. Ganhou o Prêmio Internacional de Poesia Andrés García Madrid (Espanha, 2020); o primeiro prêmio na modalidade narrativa no Concurso Literário Nacional e Internacional de Conto e Poesia “Palabras sin fronteras” (Argentina, 2013); dentre outros. Tivemos a alegria de sermos apresentados por Jotamario Arbelaez e seguimos em correspondências trocando poemas, pdf´s e nadaismos. Michael Benítez é cofundador e codiretor da editora independente Ruido Ediciones e escreve no blog https://michaelbenitezortiz.wordpress.com/
Jaime Jaramillo Escobar (1932-2021), poeta conhecido pelo pseudônimo X-504, foi um dos fundadores e começou a editar junto com Gonzalo Arango e Jotamario Arbelaez a revista Nadaísmo 70 (foram 8 edições entre 1970-1971). Durante uma temporada em Medellín em 2019, a convite de Jaime Jaramillo, tive a oportunidade de ler a seleção de poemas nadaístas traduzidos para português da publicação Poemas Nada – Baleia bus (Rébus, 2019). Nesta ocasião, pude falar sobre a Rébus, editorial e conteúdos artísticos na oficina de poesia que ele ministrou por 30 anos na Biblioteca Pública Piloto (Medellín, Colômbia). Com o apoio desta instituição, todos os sábados, de 9-12h, o poeta preparava uma apostila que era distribuída gratuitamente para o grande público que ia ouvi-lo. Na sua oficina de poesia, era imprescindível que os poemas suscitassem comentário. Após a leitura de cada poema, Jaime Jaramillo abria espaço para uma fala sobre o poema, caso ninguém tivesse nada a dizer, ele lia o poema novamente.
Precursores da Philips
Como nos quadros de Turner onde a luz pensa. Octavio Paz
As investigações da Philips provam
que a luz não foi criada por Deus no primeiro dia.
Foi Turner – acordado uma noite em Veneza,
que disse Faça-se a luz e a luz foi feita.
A princípio foi o seu pincel
e até as neblinas de Londres o reconheceram.
Logo teve um homem chamado Monet
que veio testemunhar a luz
entre os seus e os seus o receberam.
Desde então a luz habita entre nós,
cheia de Van Gogh com suas tristezas e tudo.
Quem acreditaria
Cresce uma besta por dentro,
por fora o mais doce sorriso.
As garras se esticam
em unhas rosadas e mãos muito suaves.
Cresce uma besta por dentro,
e desta vez é só um gemido.
Se fosse possível falar
diria Prazer em conhecê-lo
ou coisas do estilo.
O silêncio
– Parece verde
– É verde
– É verde?
– Sim, é verde
– Verde
– Você gosta de verde?
– Eu gosto de verde
– Qualquer verde?
– Não, somente de verde
– Por que verde?
– Porque é verde
– E além de verde?
– Não, só gosto de verde
– Só verde então?
– Sim, só verde.
– É lindo o verde
– Sim, o verde é lindo
– Claro, o verde
– Sim, o verde
A Pátria
Esta casa de espessas paredes coloniais
e um pátio de azaleias muito antigo
está em colapso há vários séculos.
Como se não fosse nada, as pessoas vão e vêm
dos quartos em ruínas,
fazem amor, dançam, escrevem cartas.
Amiúde assoviam disparos ou talvez seja o vento
que assovia através do teto quebrado.
Nesta casa os vivos dormem com os mortos,
imitam seus costumes, repetem seus gestos
e quando cantam, cantam seus fracassos.
Nesta casa tudo é ruína,
estão em ruínas o abraço e a música,
o destino, cada manhã, o sorriso, são ruínas
as lágrimas, o silêncio, os sonhos.
As janelas mostram paisagens destruídas,
carne e cinzas se confundem nas caras,
nas bocas as palavras se reviram com medo.
Nesta casa todos estamos enterrados vivos.
O Ofício de Viver
Chego aqui à velhice
e ninguém nem nada
pode me dizer
para que sirvo.
Somem cargos, vocações, missões e predestinações:
o negócio não é comigo.
Não é que me aborreça,
é que não sirvo para nada.
Ensaio profissões
que vão de cozinheira, mãe e poeta
a contadora de estrelas.
De repente quem dera ser uma cebola
para esquecer as obrigações
ou uma árvore, para cumprir todas elas.
No entanto, é mais fácil
dizer a verdade.
Sirvo para ofícios caducos:
Espírito Santo, dama de companhia,
estátua da liberdade, Arcipreste de Hita.
Não sirvo para nada.
Os muros da minha pátria
Olhar os muros da minha pátria
olhos de pedra, esfinges de ouro,
merda nas rachaduras.
País usado por um deus bêbado
que delira eternamente
com uma porta que nunca existiu ali
para o desastre
dando um nó impossível em duas línguas
que lambem sem descanso a ferida.
De joelhos e com uma flor no ânus
alguém sussurra no escuro
uma mentira obscura do Paraíso perdido.
O medo enrosca-se ao redor de uma estátua
que finge sua façanha em um parque abandonado.
Os muros da minha pátria
Quando eles vão limpá-los?
Conversa com minha filha
Muitas coisas passarão sobre seu corpo:
chuvas, desejos, lábios, tempo
gastarão tua pele e por dentro tua alma
Muitas vezes terás que saudar
a fé, a esperança, a caridade.
São questões inevitáveis,
seja educada e ponto final.
Serás assediada por respostas acordadas
e te gritarão viva a civilização
e quando perceberes por fim que o mundo
é um moinho haverás perdido para sempre.
Sobre teus ombros a levará,
a civilização, digo,
vestida de gringa, de sueca, ou de japonesa:
esta dama lê Platão,
abençoa suas axilas com desodorantes,
toma Coca-Cola e não permite
que a cumprimentem com o chapéu.
Seja educada sempre e não se esqueça, filha:
escove os dentes todas as manhãs
e apague a luz antes de dormir.
Demonstra as virtudes do amor verdadeiro e confessa ao amado os afetos vários do seu coração
Hoje penso especialmente em ti
e vejo que esse amor carece de desmaios,
de olhos aveludados e de outros gestos admiráveis.
Esse amor não se faz como a primavera,
à custa de casulos e de gorjeios.
Se faz todos os dias com a escova de dentes pela manhã,
peixe frito na cozinha
e muito suor à noite.
Se vive pouco a pouco esse amor
entre tanto prato sujo,
atrás do cotidiano de um montão de roupa para passar,
com gritos de crianças e contas de mercado,
cremes na cara e lâmpadas que não funcionam.
E outra coisa: cada manhã te quero mais.
A agonia do poeta, de Michael Benítez Ortiz
dedicado à María Mercedes Carranza
É a vida que se deve tirar de baixo da cama
Abrir o fecho do peito à direita do
coração e da noite
para poder sonhar com um mundo impossível que nem a
poesia, nem sequer o silêncio
– por mais que pareça redundante –
pode alcançar.
Porque foram oito horas, quase sempre sete, com
futebol e Coca-Cola incrustadas como agulhas na
almofada aos beijos
E acredita que pode escapar, mas é pura merda
não: minto
merda não:
é para a realidade que é impossível
mostrar os dentes quando se é poeta
Porque a mente é um manicômio
grande o suficiente como pensar nos outros
E a fé dos ratos como a da errata vai até o fim
quando o sangue dança na boca e na garganta
movendo-se atraído pela lâmpada ou isqueiro
com o qual acende
um último cigarro.