Poemas de María Mercedes Carranza e Michael Benítez Ortiz, tradução e desenhos de Thais Medeiros

Foi o poeta Jaime Jaramillo Escobar que me mostrou os poemas de María Mercedes Carranza durante um almoço no seu restaurante chinês preferido em Medellín, ele me disse que tinha a impressão de que ela era uma poeta por quem eu iria me encantar. E sim, ele estava certo.

María Mercedes Carranza (Colômbia 1945 – 2003), foi poeta, jornalista e diretora da Casa de Poesía Silva, uma fundação e biblioteca pública inteiramente dedicada à poesia, localizada em uma casa com um pátio de azaleias muito antigo, bem no estilo colonial, na Candelária, em Bogotá; essa casa guarda em seu acervo livros, revistas, arquivos sonoros, arquivos fotográficos, videoteca, objetos literários diversos, auditório e promove atividades como saraus, concursos e publicações.

Michael Benítez Ortiz é poeta, editor e jornalista musical. Vive em Bogotá. Publicou diversos livros e plaquetes de poesia, mas também participou de antologias na América Latina e Espanha. Publicou os livros: Bogotrash (Contos, 2014), Lo que quería decir era otra cosa (Poesía, 2019) y Papeles (Poesía, 2020). Fez a compilação e editou as obras: Cumpleaños del tiempo de María de las Estrellas e El Gigoló de los dioses de Luis Ernesto Valencia. Ganhou o Prêmio Internacional de Poesia Andrés García Madrid (Espanha, 2020); o primeiro prêmio na modalidade narrativa no Concurso Literário Nacional e Internacional de Conto e Poesia “Palabras sin fronteras” (Argentina, 2013); dentre outros. Tivemos a alegria de sermos apresentados por Jotamario Arbelaez e seguimos em correspondências trocando poemas, pdf´s e nadaismos. Michael Benítez é cofundador e codiretor da editora independente Ruido Ediciones e escreve no blog https://michaelbenitezortiz.wordpress.com/

Jaime Jaramillo Escobar (1932-2021), poeta conhecido pelo pseudônimo X-504, foi um dos fundadores e começou a editar junto com Gonzalo Arango e Jotamario Arbelaez a revista Nadaísmo 70 (foram 8 edições entre 1970-1971). Durante uma temporada em Medellín em 2019, a convite de Jaime Jaramillo, tive a oportunidade de ler a seleção de poemas nadaístas traduzidos para português da publicação Poemas Nada – Baleia bus (Rébus, 2019). Nesta ocasião, pude falar sobre a Rébus, editorial e conteúdos artísticos na oficina de poesia que ele ministrou por 30 anos na Biblioteca Pública Piloto (Medellín, Colômbia). Com o apoio desta instituição, todos os sábados, de 9-12h, o poeta preparava uma apostila que era distribuída gratuitamente para o grande público que ia ouvi-lo. Na sua oficina de poesia, era imprescindível que os poemas suscitassem comentário. Após a leitura de cada poema, Jaime Jaramillo abria espaço para uma fala sobre o poema, caso ninguém tivesse nada a dizer, ele lia o poema novamente.

Precursores da Philips

Como nos quadros de Turner onde a luz pensa. Octavio Paz


As investigações da Philips provam

que a luz não foi criada por Deus no primeiro dia.

Foi Turner – acordado uma noite em Veneza,

que disse Faça-se a luz e a luz foi feita.

A princípio foi o seu pincel

e até as neblinas de Londres o reconheceram.

Logo teve um homem chamado Monet

que veio testemunhar a luz

entre os seus e os seus o receberam.

Desde então a luz habita entre nós,

cheia de Van Gogh com suas tristezas e tudo.

Quem acreditaria

Cresce uma besta por dentro,

por fora o mais doce sorriso.

As garras se esticam

em unhas rosadas e mãos muito suaves.

Cresce uma besta por dentro,

e desta vez é só um gemido.

Se fosse possível falar

diria Prazer em conhecê-lo

ou coisas do estilo.

O silêncio

– Parece verde

– É verde

– É verde?

– Sim, é verde

– Verde

– Você gosta de verde?

– Eu gosto de verde

– Qualquer verde?

– Não, somente de verde

– Por que verde?

– Porque é verde

– E além de verde?

– Não, só gosto de verde

– Só verde então?

– Sim, só verde.

– É lindo o verde

– Sim, o verde é lindo

– Claro, o verde

– Sim, o verde

A Pátria

Esta casa de espessas paredes coloniais

e um pátio de azaleias muito antigo

está em colapso há vários séculos.

Como se não fosse nada, as pessoas vão e vêm

dos quartos em ruínas,

fazem amor, dançam, escrevem cartas.

Amiúde assoviam disparos ou talvez seja o vento

que assovia através do teto quebrado.

Nesta casa os vivos dormem com os mortos,

imitam seus costumes, repetem seus gestos

e quando cantam, cantam seus fracassos.

Nesta casa tudo é ruína,

estão em ruínas o abraço e a música,

o destino, cada manhã, o sorriso, são ruínas

as lágrimas, o silêncio, os sonhos.

As janelas mostram paisagens destruídas,

carne e cinzas se confundem nas caras,

nas bocas as palavras se reviram com medo.

Nesta casa todos estamos enterrados vivos.

O Ofício de Viver

Chego aqui à velhice

e ninguém nem nada

pode me dizer

para que sirvo.

Somem cargos, vocações, missões e predestinações:

o negócio não é comigo.

Não é que me aborreça,

é que não sirvo para nada.

Ensaio profissões

que vão de cozinheira, mãe e poeta

a contadora de estrelas.

De repente quem dera ser uma cebola

para esquecer as obrigações

ou uma árvore, para cumprir todas elas.

No entanto, é mais fácil

dizer a verdade.

Sirvo para ofícios caducos:

Espírito Santo, dama de companhia,

estátua da liberdade, Arcipreste de Hita.

Não sirvo para nada.

Os muros da minha pátria

Olhar os muros da minha pátria

olhos de pedra, esfinges de ouro,

merda nas rachaduras.

País usado por um deus bêbado

que delira eternamente

com uma porta que nunca existiu ali

para o desastre

dando um nó impossível em duas línguas

que lambem sem descanso a ferida.

De joelhos e com uma flor no ânus

alguém sussurra no escuro

uma mentira obscura do Paraíso perdido.

O medo enrosca-se ao redor de uma estátua

que finge sua façanha em um parque abandonado.

Os muros da minha pátria

Quando eles vão limpá-los?

Conversa com minha filha

Muitas coisas passarão sobre seu corpo:

chuvas, desejos, lábios, tempo

gastarão tua pele e por dentro tua alma

Muitas vezes terás que saudar

a fé, a esperança, a caridade.

São questões inevitáveis,

seja educada e ponto final.

Serás assediada por respostas acordadas

e te gritarão viva a civilização

e quando perceberes por fim que o mundo

é um moinho haverás perdido para sempre.

Sobre teus ombros a levará,

a civilização, digo,

vestida de gringa, de sueca, ou de japonesa:

esta dama lê Platão,

abençoa suas axilas com desodorantes,

toma Coca-Cola e não permite

que a cumprimentem com o chapéu.

Seja educada sempre e não se esqueça, filha:

escove os dentes todas as manhãs

e apague a luz antes de dormir.

Demonstra as virtudes do amor verdadeiro e confessa ao amado os afetos vários do seu coração

Hoje penso especialmente em ti

e vejo que esse amor carece de desmaios,

de olhos aveludados e de outros gestos admiráveis.

Esse amor não se faz como a primavera,

à custa de casulos e de gorjeios.

Se faz todos os dias com a escova de dentes pela manhã,

peixe frito na cozinha

e muito suor à noite.

Se vive pouco a pouco esse amor

entre tanto prato sujo,

atrás do cotidiano de um montão de roupa para passar,

com gritos de crianças e contas de mercado,

cremes na cara e lâmpadas que não funcionam.

E outra coisa: cada manhã te quero mais.

A agonia do poeta, de Michael Benítez Ortiz

dedicado à María Mercedes Carranza

É a vida que se deve tirar de baixo da cama

Abrir o fecho do peito à direita do

coração e da noite

para poder sonhar com um mundo impossível que nem a

poesia, nem sequer o silêncio

                – por mais que pareça redundante –

pode alcançar.

Porque foram oito horas, quase sempre sete, com

futebol e Coca-Cola incrustadas como agulhas na

almofada aos beijos

E acredita que pode escapar, mas é pura merda

não: minto

merda não:

é para a realidade que é impossível

mostrar os dentes quando se é poeta

Porque a mente é um manicômio

grande o suficiente como pensar nos outros

E a fé  dos ratos como a da errata vai até o fim

quando o sangue dança na boca e na garganta

 movendo-se atraído pela lâmpada ou isqueiro

com o qual acende

um último cigarro.

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Não tente tirar a lua do fundo do mar

Rébus, Ébria e Fada Inflada convidam para o lançamento de novas publicações!

Dia 23/08, a partir das 18h no Bar Glicerina @glicerina_ em Laranjeiras, RJ.

Meseta, livro que escapa do formato tradicional, é o nome do projeto a partir da tradução por Thais Medeiros e Wallace Masuko do poema Antropologia da Água, de Anne Carson. Neste poema, Carson conta de quando fez o Caminho de Santiago, desde a fronteira na França até a Finisterra.

Antropologia da Água fala sobre as metáforas da água em relação aos afetos, e esta relação, tanto pode ser percebida entre os personagens que andam lado a lado, como também no diálogo amoroso que se estabelece entre as epígrafes e os poemas. Há ainda uma reflexão sobre fotografia e memória, ‘impressões luminosas’ que nos deixam em dúvida se o poema foi escrito a partir de um diário de viagem ou a partir de fotografias desta viagem.

Meseta é o grande planalto sobre o qual se dá o percurso do poema na Península Ibérica, mas é charmoso também remeter a tradução espanhola Mil mesetas: Capitalismo y esquizofrenia, de Deleuze & Guatarri (1994).O formato gráfico busca essas referências: o livro em formato de mesetas vem enredado em um longo papel japonês. As fontes tipográficas Mrs. Eaves (serifada) e Mr. Eaves (sem serifa) de Zuzana Licko foram usadas alternadamente, num diálogo entre vozes, leituras e escritas no processo de tradução.

A Editora Ébria lança também “Robert Smithson, Artforum 1966-73”, por Antônio Ewbank e Wallace V. Masuko. A linguagem escultórica de Robert Smithson amarra sua produção textual, publicada principalmente em revistas de arte norte-americanas nos anos de 1960 e 1970; e “Revista Ilusión #0. Grafismos a partir de La ciudad del Cine, Futuro e Metrópoli”, Medellín 2022.

Outro lançamento luminoso será o da publicação dos poemas “Toda poeira da terra”, de Ursula K Le Guin, traduzido por Luiza Leite, com desenhos de Cecilia Costa e Tatiana Podlubny e impressão risográfica de João Doria de Souza. Uma parceria da Fada inflada com a Plantas Press. 

                                

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O Segredo, Denise Levertov (tr. Thais Medeiros)

Duas garotas descobriram

o segredo da vida

no súbito verso de um

poema.

Eu que não sei o

segredo escrevi

o verso. Elas

me disseram

(por uma terceira pessoa)

que o encontraram

mas não o que era

nem mesmo

em qual verso era. Sem dúvida

agora, mais de uma semana

depois, elas se esqueceram

do segredo,

do verso, do nome

do poema. Eu as amo

por encontrarem o que

eu não posso,

e por me amarem

pelo verso que eu escrevi,

e por esquecerem

aquilo

que mil vezes, até que a morte

as encontre, elas podem

descobrir de novo, em outros

versos

em outros

acontecimentos. E por

quererem saber qual é,

por

assumirem que exista

tal segredo, sim,

por isso,

sobretudo.

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Jornal Pessoal – Edição Extraordinária

A cabanagem se distinguiu de outras revoltas que eclodiram durante o Segundo Império – e mesmo antes e depois desse período – por um fato singular: o povo realmente tomou o poder. (p.28)

O Jornal Pessoal é uma colaboração da Rébus com o projeto Nheenga Cabana (2022), de Giseli Vasconcelos e Pedro Victor Brandão. Trata-se da reedição do Jornal Pessoal, baseado nos arquivos do jornalista e sociólogo paraense Lúcio Flávio Pinto sobre a revolta da Cabanagem, publicados no acervo digital cabanagem180.wordpress.com desde 2014.

Esta edição faz parte do conjunto de trabalhos Nheenga Cabana, desenvolvido como parte da exposição Atos de revolta: outros imaginários sobre independência, realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro entre setembro de 2022 e fevereiro de 2023.

No editorial da edição, há detalhes interessantes sobre a elaboração do trabalho, tanto visual, quanto gráfico dessa edição extraordinária. O Jornal Pessoal, criado por Lúcio Flávio Pinto, sobreviveu por mais de 3 décadas, com análises e perspectivas que explicam situações difíceis de compreender sobre a região, desmitificando a visão exótica, e destacando os reveses e a dimensão do desenvolvimento histórico da Amazônia. Selecionamos artigos em quatro eixos: introdução, cronologias, bibliografias comentadas em profundidade seguida da apresentação de personagens ilustres e anônimos. As imagens incluídas nesta edição e também as que estão impressas em grande formato na exposição foram criadas por Giseli Vasconcelos e Pedro Victor Brandão a partir de tecnologia recentes em que modelos de aprendizado de máquina, através de inteligência artificial, criam interpretações visuais de alta complexidade a partir de descrições de texto (prompts) em linguagem natural como o português, o inglês ou o nheengatu (língua hegemônica amazônica durante o período da Cabanagem).

O Jornal Pessoal está sendo distribuído gratuitamente na exposição e também está disponível no issuu: https://issuu.com/thaismedeiros2/docs/jornal_pessoal_okfinal_correcoes_pagdupla

JORNAL PESSOAL EDIÇÃO EXTRAORDINÁRIA REDAÇÃO: Lúcio Flávio Pinto EDIÇÃO: Giseli Vasconcelos, Thais Medeiros e Pedro Victor Brandão LEITURA DE PROVA: Thais Medeiros DESIGN E DIAGRAMAÇÃO: Tatiana Podlubny DESENVOLVIMENTO WEB: Vitor Butkus IMPRESSÃO: Gráfica Rotativa TIRAGEM: 5.000 cópias AGRADECIMENTOS: Marilene Pantoja, Natalie Summers, Luiz Pinto, Vanessa Vasconcelos e família Vasconcelos.
@rebuspress http://@pedr_vict_r http://@ordinariainprogress @podlubnytatiana

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Um homem apaixonado

Leonora Carrington (tr. Thais Medeiros)

Descendo por uma ruazinha estreita uma tarde, eu roubei um melão. O verdureiro, escondido à espreita por trás de suas frutas, me pegou pelo braço.

 “Moça, eu espero por essa chance há 40 anos. Há 40 anos eu me escondo atrás dessa pilha de laranjas na esperança de que alguém talvez pegue uma delas, e o motivo disso é porque eu preciso contar a minha história. Se você não me ouvir, eu vou te entregar para a polícia.”

“Tô ouvindo”, eu respondi.

Ele me levou para os fundos da sua loja por entre frutas e verduras. Lá, nós passamos por uma porta e chegamos a um quarto onde havia uma mulher deitada numa cama, imóvel e provavelmente morta. Tive a impressão de que ela devia estar lá há muito tempo, já que a grama havia crescido sobre a cama.

“Eu rego ela todo dia”, disse o verdureiro pensativo. “Há 40 anos eu não sei dizer se ela está viva ou morta. Ela não se mexeu, não falou nem comeu durante todo esse tempo. Mas é uma coisa estranha, ela continua quente. Se você não acredita em mim, veja.” 

Então ele levantou a colcha da cama e eu vi uma grande quantidade de ovos e alguns pintinhos recém-nascidos. 

“Tá vendo”, ele disse, “é aqui que eu trago meus ovos para chocar, eu vendo ovos frescos também!”

Nós nos sentamos em lados opostos da cama e o verdureiro começou a contar a sua história. 

“Eu a amava tanto, acredite em mim, eu sempre a amei. Ela era tão doce, tinha uns pezinhos tão ágeis e pálidos. Você gostaria de vê-los?”

“Não,” eu disse.

“De qualquer forma,” ele continuou com um suspiro profundo, “Ela era tão linda! Eu tenho muito cabelo, mas ela tinha um cabelo preto magnífico. E nós dois temos cabelos brancos agora. O pai dela foi um homem extraordinário. Ele tinha uma grande casa no campo. Era colecionador de costelas de cordeiro. Nós nos conhecemos assim. Eu tenho um dom. Eu posso desidratar carne apenas com o olhar. O Sr. Puxapé (esse era o seu nome) ouviu falar de mim. Ele me pediu para ir na sua casa para desidratar suas costelas, ele não queria que elas apodrecessem. Agnes era sua filha. Nós nos apaixonamos imediatamente.”

“Partimos juntos em um barco no Sena. Eu fui remando. Agnes disse, “Eu te amo tanto que eu vivo só por você.” E eu usei as mesmas palavras para dizer o que eu sentia por ela. Eu acho que é o meu amor que a mantém tão quente até hoje. Sem dúvida ela está morta, mas o calor permanece.”

“Ano que vem,” ele continuou com o olhar perdido, “ano que vem eu devo plantar alguns tomates. Eu ficaria surpreso se eles não se saíssem muito bem lá…”

“A noite caiu. Eu não sabia onde passar nossa noite de núpcias. Agnes estava tão pálida, pálida de exaustão. Por fim, assim que deixamos Paris para trás, eu vi um café ao longo do rio.Amarrei o barco e subimos em um terraço estranho e escuro. Lá, dois lobos e uma raposa ficaram nos rondando. Ninguém mais…”

“Eu bati na porta. Bati de novo, mas ela continuou fechada com um silêncio terrível.”

“A Agnes está cansada, Agnes está muito cansada”, gritei com toda minha força.

“Finalmente uma velha coroa se pendurou na janela e disse, ‘Eu não sei de nada. A raposa que é proprietária daqui. Deixe-me dormir. Você está me dando nos nervos.’”

“Agnes começou a chorar. Não havia nada que eu pudesse fazer senão falar com a raposa. ‘Você teria alguma cama?’ Perguntei várias vezes. Ela não respondeu. Ela não podia falar. Então a cabeça da velha coroa, agora ainda mais velha do que antes, desceu lentamente da janela, amarrada na ponta de um pedaço de barbante.”

“Fale com os lobos. Eu não sou responsável aqui. Por favor, me deixe dormir.”

“Eu entendi que a velha coroa estava louca e que não havia motivo para continuar. Agnes ainda estava chorando. Depois de dar várias voltas em torno da casa, consegui dar um jeito de abrir uma janela pela qual nós entramos. Nós estávamos em uma cozinha com pé-direito alto, onde havia um grande forno brilhando vermelho como fogo. Alguns vegetais cozinhavam dando saltos na água quente; essa brincadeira os encantava. Nós comemos bem e depois deitamos para dormir no chão. Eu segurei Agnes nos meus braços. Nós não dormimos nada, nada, nem uma piscadela. Havia todo tipo de coisa naquela cozinha terrível. Uma grande quantidade de ratos sentados na beira de seus buracos cantavam estridentes com suas vozes fininhas. Quatro cheiros se espalharam e dispersaram um atrás do outro, e havia correntes de ar estranhas. Acho que foram as correntes de ar que acabaram com a minha pobre Agnes. Ela nunca mais foi ela mesma. A partir daquele dia, ela falou cada vez menos…”

E, nesse momento, o dono da mercearia estava tão cego de suas lágrimas que eu pude escapar com o meu melão.

Um homem apaixonado, de Leonora Carrington, 1937-38/ tr. Thais Medeiros

Cozine, ilustrações de Thais Medeiros (Rébus, 2022)

Outros contos de Leonora Carrington publicados na Rébus:

A Debutante https://issuu.com/thaismedeiros2/docs/rebus_09-12-09_final

As Férias do Esqueleto https://issuu.com/thaismedeiros2/docs/publicacao_1.4

A Casa do Medo https://issuu.com/thaismedeiros2/docs/rebus_signals_low-single

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Era uma vez uma menina chamada María de las Estrellas

cada minuto
cada segundo
passa um ano
porque todos os anos
não começaram ao mesmo tempo
comecei esse poema quando tinha 7 anos
e agora tenho 700.
 
Maria de las Estrellas 
 
 
quando a água cai muita coisa se vai
e às vezes as coisas ficam mais mágicas do que já eram
quando a água cai também tem muita coisa para falar 
e às vezes as pessoas se divertem ou ficam isoladas em algum lugar 
mas não adianta reclamar da água porque ela é nossa amiga, nossa mãe
e assim termina o meu poema, lindo como o luar
quem reclama da água, sorte não terá.
 
Esse é o meu primeiro poema, na época eu tinha 7 anos. 
 
Pietra Sampaio

A publicação da María de las Estrellas contou com desenhos enviados por crianças, mas também recebemos versos lindos como este da Pietra Sampaio, agora com 10 anos. Há muitos poemas ainda desconhecidos de María de las Estrellas, por isso, traduzi mais alguns. Que eles inspirem novas criações!


Os pratinhos estão tristes tristes tristes
porque não encontram sua casa
e eles dizem oooiii, oooiii, oooiii…

*

Astronautas no Paraíso

Quando Cristo apareceu na Lua
ele encontrou com uns astronautas
e com um anão
e uma toalha de mesa estava voando
e os astronautas disseram
O que você está fazendo aqui Cristo?

O que fazem na escola?
Cristo disse aos astronautas
e dois passarinhos voaram
sobre uma nuvem

Uma máquina estava na terra
nada de gente
pura santidade
e um beijo para o anjo

Havia apenas maçãs no paraíso
e uma donzela
saiu com uma espada
e uma sombrinha
As mesas eram como discos voadores

**

O dia em que os anjos me colocaram um vestido com asas
Deus me levou ao Paraíso e me disse:
Agora vá comer uma maçãzinha!
Eu comi a maçã mais proibida
e não aconteceu nada comigo
Adão ainda não havia nascido
Deus não podia me dizer como era

***

Estão caindo os meus
dentes de leite
e estão nascendo
os meus dentes de ferro
Não me façam
ter raiva.

Poemas de María de las Estrellas do livro El Mago en la Mesa, tradução de Thais Medeiros.

A publicação da María de las Estrellas (Rébus, 2020) está à venda por R$ 25,00 e a da Raquel Jodorowsky (Rébus, 2021) por R$ 30,00 + envio Correios. Contato: rebuspress@gmail.com

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Simples, como uma formiga de duas cabeças

Raquel, a fazedora de poemas inúteis, disse:

Quero recuperar minha dignidade

no lugar mais pobre da terra

vestir-me de um canto para escrever um canto

que não pretenda divertir, bajular nem comover

simples, como uma formiga de duas cabeças

insignificante suspiro

no fundo de um planeta canibal

Quero criar asas e chegar

inundando os países de poemas que riem

como se tocados por uma pedra mágica

despertar o coração da sua força

fazer esquecer a pele da angústia antiga

No lugar mais iluminado da terra

quero aprender a falar 

sem palavras graves e de dicionários

silenciosa ou pura como a língua de uma criança

E voltar vestida de folhas

nem mulher, nem homem

para cantar, para cantar.

*

Enquanto estou longe, Raquel Jodorowsky – à venda R$ 30,00 + envio.

edição e tradução Thais Medeiros

Poemas do livro Ajy Tojen. Ediciones el corno emplumado n.12, México, 1964: Ajy Tohen, A Grande Senhora da Noite, Mastigação, Poema em todas as línguas, Raquel, a fazedora de poemas inúteis) e Caramelo de Sal. ed. Ausonia, Peru, 1979: Aqui Fala, Aves da Venezuela, E assim de repente, Águas-vivas, O Mergulho Suicida.

Ilustrações Tesudas (2021), bordados de Carol Medeiros. Tesudas é uma série de bordados motivada pelo fascínio pelas flores e pelo sexo na natureza: seres-flores surreais, híbridos, eróticos. Repletos de cores, líquidos e espinhos. Férteis de vida e de tesão cósmico.

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The Floating Bear – PDF Liberado e Pré-venda do Impresso


A Floating Bear – Poemas traduzidos é uma coletânea de poemas da newsletter editada na década de 1960 por Diane di Prima e LeRoi Jones.

A publicação era enviada via correios para uma lista de coreógrafos, pintores, poetas e críticos. Por isso queríamos fazer o mesmo e disponibilizar gratuitamente essa coletânea traduzida. Vocês podem fazer o download do pdf online no link http://floatingbear-poemas.superhi.com/.

Quem quiser imprimir em casa, o arquivo tem o formato A4. Vamos fazer também uma pequena e única tiragem impressa da Floating Bear com algumas coisinhas especiais encartadas. Essa tiragem está em pré-venda que será feita via depósito bancário ou pix (email rebuspress@gmail.com) Basta entrar em contato pelo email rebuspress@gmail.com

Agradecemos a todos os tradutores que participaram com tanta alegria!

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Antropologia da Água, de Anne Carson

Mergulho: Introdução à Antropologia da Água

Eu sou uma criatura mendaciosa.
Kafka

A Água é uma coisa que não se pode segurar. Como os homens. Eu já tentei. Pai, irmão, amante, melhores amigos, fantasmas famintos, e Deus, um a um escaparam das minhas mãos. Talvez seja assim que deva ser – o que o os antropólogos chamam de “risco normal” no encontro com culturas estrangeiras. Foi um antropólogo que me ensinou pela primeira vez sobre o risco. Ele enfatizou a importância de dizer encontro ao invés de descoberta ao falar sobre estas coisas. “Pense como diferença”, ele disse, “entre acreditar no que você quer acreditar e acreditar no que pode ser provado”. Pensei sobre isso. “Eu não quero acreditar em nada”, eu disse. (Mas eu estava mentindo.) “E eu não tenho nada a provar” (Menti de novo.) “Eu apenas gostaria de viajar pelo mundo e parar, observando o que está abaixo do céu.” (Isto, de fato, é verdade.) Cruelmente, neste ponto, ele mencionou uma cultura que estudou na qual as verdadeiras e falsas virgens são identificadas pelo risco da água. Uma virgem intacta pode sobreviver ao mergulho em águas profundas, mas uma mulher que experimentou o amor irá se afogar. “Eu não estou interessada em verdadeiro e falso”, eu disse (uma última mentira) e nós ficamos em silêncio.

Antropologia é uma ciência de surpresas recíprocas. Eu queria fazer uma série de perguntas para ele, como, por exemplo, se ele poderia me falar sobre a diferença entre o céu e o inferno, mas ele não podia.  Ao invés disso, me peguei contando para ele sobre as filhas de Dánao. Dánao foi um herói da mitologia grega antiga que teve cinquenta filhas. Elas amavam o seu pai como se fossem parte do corpo dele. Ao dormir, quando Dánao mexia-se em sua cama, elas acordavam, cada uma na sua caminha, olhando para a escuridão.  Chegou então o momento de se casarem. Dánao encontrou cinquenta noivos. Ele marcou a data. Ele realizou a cerimônia de casamento. À meia noite de núpcias, cinquenta portas se fecharam. E foi então que aconteceu um encontro terrível. Cada uma das quarenta e nove Danaides tirou uma espada da coxa e esfaqueou o noivo até a morte.

Este crime arquetípico de mulheres foi recompensado pelos deuses com uma punição paradigmática. As quarenta e nove filhas matadoras de Dánao foram enviadas para o inferno e condenadas a passar a eternidade juntando água em uma peneira.

Mas sim, teve uma filha que não puxou sua espada. O que aconteceu com ela ainda não foi descoberto. Vista-se, as águas são profundas.

*

Tipos de Água: Um Ensaio sobre o Caminho de Santiago

St. Jean Pied de Port, 20 de Junho

A coisa boa é que sabemos
que as taças são para beber
.
Machado

Ao pé do porto de Roncesvalles, uma pequena cidade se banha. Trovoadas caem sobre as montanhas ao entardecer. Bolas de fogo rolam pela cidade. O ar se parte como uma fruta verde. Sob a janela do meu hotel passa um rio (o Nive) com uma considerável queda d´água. Há uma sombra escura na borda da queda, e quando olho pra baixo, eu a vejo batendo de um lado para o outro na correnteza. Parece um cachorro afogado. É um cachorro afogado. Eu fico olhando para baixo com a cabeça fervendo. Ninguém está vendo o cachorro. Será que eu devo comentar? Eu não sei a palavra para afogado. Estaria eu à beira de uma antiga gafe? Os garçons vêm e vão no terraço do bar do hotel, sacolejando muito para servir a sopa. Uma braçada abaixo deles bate o corpo escuro. Ao pé da queda, onde a água corre para longe, um pescador lança o seu anzol. Qual sentido pode haver nas coisas? Eu atravessei países, séculos de sono difícil e árduos percursos e ainda não sei o sentido das coisas quando eu as vejo, quando tenho as peças nas minhas mãos. Poderia haver a escultura de um cachorro afogado na borda de uma antiga queda d´água? Eu olho e passo, as horas passam. Minha cabeça é uma chacota. A noite cai e a sombra continua lá. O pescador se foi, os garçons sacodem as toalhas das mesas no terraço. O que é que os outros sabem?

Peregrinos eram pessoas que adoravam uma boa charada.


tradução Thais Medeiros e Wallace Masuko

Antropologia da água é um longo poema em forma de ensaios que eu e Wallace Masuko traduzimos em parceria. Anne Carson é uma poeta canadense que nos faz rever nossas expectativas do que é um poema, uma performance, um livro. Uma das surpresas deste poema é enredar por metáforas do amor, da escrita e das águas enquanto a poeta percorre o Caminho de Santiago – desde St. Jean Pied de Port até Finisterre, na compa­nhia de um homem a quem ela chama de “meu Cid”. Cada um dos 41 capítulos tem a se­guinte estrutura: nome da cidade, data, uma epígrafe de um escritor japonês e um texto em primeira pessoa que termina com uma máxima sobre “Peregrinos”.

In: Plainwater – Essays and Poetry. NY: First Vintage Contemporary Ed., 2000.


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Enquanto estou longe – Raquel Jodorowsky

Raquel Jodorowsky, pintora e poeta, nasceu no Chile, filha de russos, e viveu muitos anos no Peru, onde se naturalizou (Chile 1927 – Peru, 2011). Nos anos 50, estudou Antropologia na Universidad Mayor de San Marcos, em Lima, e lá editou os seus primeiros livros de poesia: La ciudad inclemente (1955); En la pared de los suenos alguien llama (1957); Ensentidoinverso (1960). Em 1964, a revista mexicana el corno emplumado lhe dedicou toda uma edição, lançando o Ajy Tohen. Jodorowsky morou também no México, publicou nas revistas Nadaísmo 70, na Colômbia, além de ter participado de muitas outras antologias em diversos países. O poeta Jotamario Arbeláez conta que ela fez parte do movimento nadaísta: “Compartilhamos com ela as devastações dos anos 60, em Cali e Bogotá, onde a batizamos no rito roto do nadaísmo, ao qual ela se manteve fiel dentre tantas outras causas encaroçadas”. E conta ainda que, aos 13 anos, Raquel viajou 800 quilômetros para ver uma árvore e saudou-a como uma grande senhora. A árvore lhe retribuiu estendendo a mão, recorda-se.

Li pela primeira vez os poemas de Raquel Jodorowsky na revista Nadaísmo 70 (Archivo del Movimiento Nadaísta/ Biblioteca Pública Piloto), em Medellín. De volta à galáxia colombiana, em setembro de 2019, fui atrás dos seus livros nas bibliotecas de Bogotá (Casa de Poesia Silva y Biblioteca Luis Ángel Arango).  Dessa pesquisa, fiz uma seleção e traduzi dez poemas que foram retirados dos livros Ajy Tohen (México, 1964) e Caramelo de Sal (Peru, 1977), e que serão publicados em breve na singela série editorial de plaquettes nadaístas da Rébus (da qual também fazem parte Poemas Nada e De Mentira – 13 poemas de María de las Estrellas). 

A artista Carol Medeiros ilustra a publicação com Tesudas, série de bordados motivada pelo fascínio pelas flores e pelo sexo na natureza: seres-flores surreais, híbridas, eróticas. Repletas de cores, líquidos e espinhos. Férteis de vida e de tesão cósmico.

A Grande Senhora da Noite

Ajy Tojen quer dizer “O Criador de Luz” na língua

dos Yakutes de Turushank.

O Criador de Luz, em qualquer outro idioma, quer dizer

Um poeta.

Uma palavra mágica que pode ser comparada com as coisas que

não morrem, como as pedras.

Uma palavra fazedora de um homem que é a agulha que nos

cose ao infinito.

Ele chama e cria o nome. Chama “universo” e o universo se apresenta.

Com a sua velha boca de menino, é o único a evocar o Espírito da

noite, aquele que está em todas as partes, que não tem nome,

que não há nome para ele.

O poeta criador de luz, uma entidade solar, transmite sua mensagem

sobrenatural herdada do sangue de seus antepassados.

Nem bom, nem mau, como o coração de qualquer homem, como

a luz mesma que nunca está livre de uma aliança tenebrosa, como

a escuridão que nunca está inteiramente desprovida de luz.

Os poetas apareceram como flores na terra.

Sob os galhos da árvore do mundo, comendo carne de serpente,

aprenderam a imitar as vozes das aves. E assim descobriram

o segredo da vida. Então esfregam suas bochechas até fazer aparecer

uma terceira pele e nos revelam o destino e profetizam

por trás de todos os poemas.

O Ajy Tojen nos aproxima à sua boca de saber. Quer nos ensinar

a voltar a viver no cosmos como em uma cidade.

Dentro de um tambor mágico de águas bate seu rito, nos transmite

as instruções. E nós, reunidos como podemos neste

mundo vertebrado, daqui deste incêndio, aprendemos a te chamar:

Ah Grande Senhora da Noite

Nos aproxime de ti

quando já não nos resta nada mais da alma

Faça com que os nossos restos se transformem em coisas charmosas

Na sua escuridão, pinte-nos de roxo, a cor da vida.

Enquanto o tempo tarda a sua chegada

defenda-nos

dos que sempre estão apedrejando

nossa antiguidade

e não creem que fomos semelhantes aos

anjos de seis asas

Com a coragem de um carneiro te invocamos

transforme-nos em algo totalmente resplandecente

como fogo

e não nos explique tudo o que sabe

porque então já não haveria mais mistério

Fadados a existir mais tarde

vivendo várias existências de cada vez

Faça-nos habitar muitos mundos ao mesmo tempo

Grande Senhora da Noite

em seu coração de cogumelos alucinantes

seremos imortais

ainda que possivelmente um dia Deus mate-nos

Esconda atrás de uma máscara humana

a nossa verdadeira face

Espírito Inominável

no fumegante espelho que consulta o sol

guarde a nossa imagem

não nos faça parecer outro ser humano

para que ninguém se atreva a violar a proibição

de quebrar nossos ossos

outra vez na terra.

*

O Ajy Tojen

           está

           em

todas as partes

           não há

           nome

           não há

           nome

para ele

poemas de Raquel Jodorowsky / tradução Thais Medeiros

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