Antropologia da Água, de Anne Carson

Mergulho: Introdução à Antropologia da Água

Eu sou uma criatura mendaciosa.
Kafka

A Água é uma coisa que não se pode segurar. Como os homens. Eu já tentei. Pai, irmão, amante, melhores amigos, fantasmas famintos, e Deus, um a um escaparam das minhas mãos. Talvez seja assim que deva ser – o que o os antropólogos chamam de “risco normal” no encontro com culturas estrangeiras. Foi um antropólogo que me ensinou pela primeira vez sobre o risco. Ele enfatizou a importância de dizer encontro ao invés de descoberta ao falar sobre estas coisas. “Pense como diferença”, ele disse, “entre acreditar no que você quer acreditar e acreditar no que pode ser provado”. Pensei sobre isso. “Eu não quero acreditar em nada”, eu disse. (Mas eu estava mentindo.) “E eu não tenho nada a provar” (Menti de novo.) “Eu apenas gostaria de viajar pelo mundo e parar, observando o que está abaixo do céu.” (Isto, de fato, é verdade.) Cruelmente, neste ponto, ele mencionou uma cultura que estudou na qual as verdadeiras e falsas virgens são identificadas pelo risco da água. Uma virgem intacta pode sobreviver ao mergulho em águas profundas, mas uma mulher que experimentou o amor irá se afogar. “Eu não estou interessada em verdadeiro e falso”, eu disse (uma última mentira) e nós ficamos em silêncio.

Antropologia é uma ciência de surpresas recíprocas. Eu queria fazer uma série de perguntas para ele, como, por exemplo, se ele poderia me falar sobre a diferença entre o céu e o inferno, mas ele não podia.  Ao invés disso, me peguei contando para ele sobre as filhas de Dánao. Dánao foi um herói da mitologia grega antiga que teve cinquenta filhas. Elas amavam o seu pai como se fossem parte do corpo dele. Ao dormir, quando Dánao mexia-se em sua cama, elas acordavam, cada uma na sua caminha, olhando para a escuridão.  Chegou então o momento de se casarem. Dánao encontrou cinquenta noivos. Ele marcou a data. Ele realizou a cerimônia de casamento. À meia noite de núpcias, cinquenta portas se fecharam. E foi então que aconteceu um encontro terrível. Cada uma das quarenta e nove Danaides tirou uma espada da coxa e esfaqueou o noivo até a morte.

Este crime arquetípico de mulheres foi recompensado pelos deuses com uma punição paradigmática. As quarenta e nove filhas matadoras de Dánao foram enviadas para o inferno e condenadas a passar a eternidade juntando água em uma peneira.

Mas sim, teve uma filha que não puxou sua espada. O que aconteceu com ela ainda não foi descoberto. Vista-se, as águas são profundas.

*

Tipos de Água: Um Ensaio sobre o Caminho de Santiago

St. Jean Pied de Port, 20 de Junho

A coisa boa é que sabemos
que as taças são para beber
.
Machado

Ao pé do porto de Roncesvalles, uma pequena cidade se banha. Trovoadas caem sobre as montanhas ao entardecer. Bolas de fogo rolam pela cidade. O ar se parte como uma fruta verde. Sob a janela do meu hotel passa um rio (o Nive) com uma considerável queda d´água. Há uma sombra escura na borda da queda, e quando olho pra baixo, eu a vejo batendo de um lado para o outro na correnteza. Parece um cachorro afogado. É um cachorro afogado. Eu fico olhando para baixo com a cabeça fervendo. Ninguém está vendo o cachorro. Será que eu devo comentar? Eu não sei a palavra para afogado. Estaria eu à beira de uma antiga gafe? Os garçons vêm e vão no terraço do bar do hotel, sacolejando muito para servir a sopa. Uma braçada abaixo deles bate o corpo escuro. Ao pé da queda, onde a água corre para longe, um pescador lança o seu anzol. Qual sentido pode haver nas coisas? Eu atravessei países, séculos de sono difícil e árduos percursos e ainda não sei o sentido das coisas quando eu as vejo, quando tenho as peças nas minhas mãos. Poderia haver a escultura de um cachorro afogado na borda de uma antiga queda d´água? Eu olho e passo, as horas passam. Minha cabeça é uma chacota. A noite cai e a sombra continua lá. O pescador se foi, os garçons sacodem as toalhas das mesas no terraço. O que é que os outros sabem?

Peregrinos eram pessoas que adoravam uma boa charada.


tradução Thais Medeiros e Wallace Masuko

Antropologia da água é um longo poema em forma de ensaios que eu e Wallace Masuko traduzimos em parceria. Anne Carson é uma poeta canadense que nos faz rever nossas expectativas do que é um poema, uma performance, um livro. Uma das surpresas deste poema é enredar por metáforas do amor, da escrita e das águas enquanto a poeta percorre o Caminho de Santiago – desde St. Jean Pied de Port até Finisterre, na compa­nhia de um homem a quem ela chama de “meu Cid”. Cada um dos 41 capítulos tem a se­guinte estrutura: nome da cidade, data, uma epígrafe de um escritor japonês e um texto em primeira pessoa que termina com uma máxima sobre “Peregrinos”.

In: Plainwater – Essays and Poetry. NY: First Vintage Contemporary Ed., 2000.


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