O Tecelão de Ficções, Anne Carson

O Tecelão de Ficções

Imagine uma cidade onde não há desejo. Vamos supor, por enquanto, que os habitantes desta cidade continuem a comer, beber e procriar de maneira mecânica; ainda assim, suas vidas parecem rasas. Não teorizam, não idealizam e nem falam figurativamente. Poucos pensam em evitar a dor; ninguém dá presentes. Enterram seus mortos e esquecem onde. Zenão de Cítio, descobre-se prefeito e está pronto para trabalhar copiando o código civil em folhas de bronze. Eventualmente um homem e uma mulher se casam e vivem felizes como dois viajantes que se conheceram por acaso em um hotel de beira da estrada; à noite, adormecidos, sonham o mesmo sonho, no qual observam o fogo movendo-se ao longo de uma corda que os une, mas é improvável que se lembrem do sonho pela manhã. A arte de contar histórias é amplamente ignorada.

Uma cidade sem desejo é, em suma, uma cidade sem imaginação. Aqui as pessoas pensam apenas sobre o que já sabem. A ficção é simplesmente falsificação. O prazer está fora de questão (um conceito a ser entendido em termos históricos). Esta cidade tem uma alma acinética, uma condição que Aristóteles poderia explicar da seguinte forma: sempre que qualquer criatura almeja alcançar o que deseja, ele diz, esse movimento começa com um ato da imaginação que ele chama de fantasia (phantasia). Sem tal ato, nem os animais nem os homens teriam alcançado a condição presente ou qualquer coisa além do que já sabem. A fantasia desperta a mente para o movimento através do seu poder de representação; em outras palavras, a imaginação prepara o desejo por representar o objeto desejado como desejável para a mente do desejante. A fantasia conta uma história para a mente. A história deve esclarecer uma única coisa, a saber, a diferença entre o que é conhecido/no presente/atual e o que não é – a diferença entre o desejante e o desejado (Arist., De An. 3.10.433 a-b).

Nós sabemos que forma essa história pode tomar quando os poetas resolvem contá-la em poemas líricos, quando os romancistas a escrevem em romances, quando os filósofos a interpretam como dialética. A fim de informar a diferença entre o que é conhecido/no presente/atual e o que falta/possível/desconhecido, é necessário um circuito de três pontos. É preciso lembrar da estrutura de Safo, no fragmento 31: um “triângulo erótico” onde os três componentes do desejo se tornam visíveis de uma só vez em uma espécie de eletrificação. Sugerimos, durante nossa consideração sobre este poema, que a forma triangular é mais do que uma elegância arbitrária por parte da poeta. O desejo não pode ser percebido à parte desses três ângulos. A concepção de fantasia de Aristóteles nos ajuda a ver como isso ocorre. Na sua opinião, toda mente desejante sai em busca do seu objeto por meio de uma ação imaginativa. Se isso é verdade, nenhum amante, poeta ou qualquer outro ser pode manter seu desejo distante do empreendimento fictício e triangulador revelado a nós por Safo neste fragmento. “Eros faz de todos poeta”, diz a antiga sábia (Eur. Sthen., TGF, fr. 663; Pl. Symp.196e).

Eros será sempre uma história em que o amante, o amado e a diferença entre eles se entrelaçam. Essa interação é uma ficção organizada pela mente do amante. Ela tem uma carga emocional tão odiosa quanto deliciosa e emite uma luz como a do conhecimento. Ninguém teve uma visão mais clara sobre essa questão do que Safo. Ninguém captou seus recursos com mais precisão em adjetivos. Vimos, nas páginas precedentes, um pouco da força de seu neologismo glukupikron, “agridoce”. Aqui está outra marca que ela criou para caracterizar a experiência erótica:

Sócrates chama Eros de Sofista, mas Safo o chama de “tecelão de ficções” [mythoplokon] diz Máximo de Tiro (18.9; Sappho, LP, fr. 188).

O adjetivo mythoplokos, bem como o contexto em que Maximus o preservou para nós, reúne alguns aspectos significativos de Eros. Para Safo, o desejável do desejo parece estar ligado ao processo ficcional que ela chama de “tecelagem do mito”. Sócrates, por outro lado, vê nesse processo algo parecido com um sofisma. Quão intrigante esse alinhamento de Safo e Sócrates, esse agrupamento da contadora de histórias com o professor de conhecimento: eles têm Eros em comum. Como assim?

Em nossas leituras de textos gregos, seguimos os traços de uma antiga analogia entre a busca do conhecimento e a atração do amor, desde o seu mais antigo vestígio no verbo de Homero mnaomai (“lembrar”). Vamos reconsiderar essa analogia, designando Safo e Sócrates para representar seus dois pólos. De começo, encontramos uma dificuldade. Sócrates, em seu próprio testemunho, prefere contrair os dois pólos em um. É a única questão a que se debruça ao longo de sua vida, uma única pesquisa em que a compreensão do verdadeiramente real e a busca pelo verdadeiramente desejável são identificadas. Duas vezes nos diálogos platônicos ele fala sobre sua busca por conhecimento e afirma que o seu saber, tal como é, não é nada além de um conhecimento de “coisas eróticas” (ta erõtika: Symp. 177d; Theag.128b.) Ele não nos conta em nenhuma passagem o que ele entende por ta erõtika, “coisas eróticas”, mas podemos deduzir pela história de sua vida.

Ele adorava fazer perguntas. Ele adorava ouvir as respostas, construir argumentos, testar definições, descobrir enigmas e vê-los se desdobrarem em uma estrutura que se abre através da lógica (logos) como uma estrada sinuosa (Phr.274a; cf. 272c) ou uma vertigem (Sof. 264c). Ele adorava, isto é, o processo de vir a saber. A respeito desse amor ele é franco e preciso. Ele nos diz exatamente onde Eros está localizado no processo de conhecer ou pensar. Eros está na interseção de dois princípios de raciocínio, pois o logos prossegue em duas operações simultâneas. Por um lado, a mente racional deve perceber e reunir certas particularidades dispersas, a fim de tornar compreensível, por definição, o que deseja explicar. Esta é a atividade de “coletar” (synagõgẽ: Phdr. 265d-e). Por outro lado, é necessário dividir as coisas por classes, onde as articulações naturais estão: essa atividade é “dividir” (diaeresis, 265e).

Isto é, nós pensamos projetando o mesmo na diferença, unindo as coisas em uma relação ou idéia, ao mesmo tempo em que mantemos as distinções entre elas. Uma mente pensante não é engolida pelo que vem a saber. Ela tenta apreender algo relacionado a si mesmo e ao seu conhecimento atual (e, portanto, cognoscível em algum grau), mas também separado de si mesmo e de seu conhecimento atual (e, portanto, não idêntico a esses). Em qualquer ato de pensamento, a mente deve atravessar esse espaço entre o conhecido e o desconhecido, ligando um ao outro, mas ainda assim mantendo visível sua diferença. É um espaço erótico. Para alcançá-lo, é arriscado; parece ser necessário uma espécie de estereoscopia. Vimos essa atividade estereoscópica em outros contextos como, por exemplo, no fragmento de Safo 31. A mesma estratégia que chamamos de “artifício erótico” (erotic ruse) em romances e poemas, agora parece constituir a própria estrutura do pensamento humano. Quando a mente alcança o conhecimento, o espaço do desejo se abre e uma ficção necessária transpira.

É nesse espaço, no ponto de interseção dos dois princípios do raciocínio, que Sócrates localiza Eros. Ele descreve “coleção e divisão” como a atividade que o torna capaz de falar e pensar (Phdr. 266b). E declara ser apaixonado por esta atividade:

O fato é que, Fedro, eu mesmo sou um amante dessas divisões e coleções. (Phdr. 266b; cf. Phlb. 16b)

Isto é uma coisa surpreendente a se dizer. Mas ele devia estar falando sério: afinal, dedicou toda a sua vida nesta atividade levado por uma única pergunta. Uma questão despertada nele por Pythia em Delfos quando ela, de acordo com a conhecida história contada na Apologia de Platão, anunciou Sócrates o mais sábio dos homens. O pronunciamento incomodou Sócrates. Depois de consideráveis pesquisas e reflexões, ele chegou a uma conclusão sobre o que o oráculo queria dizer:

Nesta pequena coisa, pelo menos, parece que sou o mais sábio – não acredito saber aquilo que não sei. (Ap. 21d)

O poder de ver a diferença entre o que é conhecido e o que é desconhecido constitui a sabedoria de Sócrates e motivou sua vida em busca. A atividade de buscar essa diferença é aquela com a qual ele admite estar apaixonado.

A partir de declarações de amantes como Sócrates ou Safo, podemos imaginar o que seria viver em uma cidade sem desejo. Tanto o filósofo quanto a poeta se encontram descrevendo Eros em imagens de asas e metáforas de voar, pois o desejo é um movimento que leva os corações ansiosos de lá para cá, lançando a mente em uma história. Na cidade sem desejo, tais vôos são inimagináveis. As asas são cortadas. O conhecido e o desconhecido aprendem a alinharem-se um atrás do outro, garantindo que você esteja posicionado em um ângulo adequado, de modo que eles pareçam ser um e o mesmo. Se houver uma diferença visível, talvez seja difícil dizer, pois o valioso verbo mnaomai passou a significar “um fato é um fato”. Buscar algo além dos fatos o levará para além desta cidade e talvez, assim como Sócrates, para além deste mundo. Como Sócrates percebeu nitidamente, alcançar a diferença entre o conhecido e o desconhecido é uma proposta de alto risco. Ele achou que o risco valesse a pena, porque estava apaixonado pelo próprio cortejo. E quem não é?

Anne Carson. "O Tecelão de Ficções", in Eros the Bittersweet (1998)

Tradução Thais Medeiros 
LUZIA

Luzia, 2018

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